quarta-feira, 19 de julho de 2023

Um Olhar sobre ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL E FEMINICÍDIO NA BÍBLIA por Samuel C Santos

A Bíblia contém uma história forte de um assassinato, através de estupro, de forma lenta e muito dolorosa.  Ela é abusada sexualmente durante a noite toda pelos agressores e no dia seguinte é deixada na porta da sua casa, para o marido. 

ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL E FEMINICÍDIO NA BÍBLIA

Por Samuel Carvalho dos Santos

História de Feminicídio na Bíblia:

A violência contra as mulheres é uma triste realidade persistente no mundo moderno, deixando cicatrizes profundas na sociedade. Entretanto, é fundamental reconhecer que essa problemática não é exclusiva da atualidade; vestígios dessa triste história também são encontrados na Bíblia, revelando narrativas dolorosas de mulheres que enfrentaram violência, opressão e até mesmo tragédias fatais. É necessário enfrentar esse legado histórico com coragem, a fim de promover uma mudança significativa e construir uma sociedade onde todas as mulheres sejam tratadas com dignidade e respeito.

No livro de Gênesis encontramos a história da criação do ser humano. Homem e mulher foram criados a semelhança de Deus, portanto com valores e direitos iguais. Gênesis 1:27: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” O texto aqui está bem claro, ambos os sexos foram criados iguais, sem nenhuma distinção, dignos de todo o respeito. Os princípios e ensinamentos bíblicos não mudaram.

Encontramos no Velho Testamento algumas mulheres com histórias marcantes de poder, liderança, conquista, enfim, mulheres que influenciaram a sociedade na sua época como Débora, uma juíza que foi uma líder em Israel numa batalha e era conhecida por ser sábia e corajosa (Juízes 4-5); Rute, uma viúva moabita que não deixou sua sogra, que era judia, e com isso se tornou uma antecessora do Rei Davi (Rute 1-4) e Ester, uma rainha muito respeitada e admirada pelo seu povo devido seus atos de fé e coragem (Ester 1-10). Enfim, essa são apenas algumas das mulheres bíblicas que influenciaram positivamente seu povo e marcaram gerações inteiras.

Também encontramos na Bíblia histórias de mulheres marcadas por abusos sexuais, opressão e violência como o estupro de Diná, encontrado em Gênesis 34:2 “Viu-a Siquém, filho do heveu Hamor, que era príncipe daquela terra, e, tomando-a, a possuiu e assim a humilhou” e os abusos que Tamar sofreu, encontrado em 2 Samuel 13:14 “Porém ele não quis dar ouvidos ao que ela lhe dizia; antes, sendo mais forte do que ela, forçou-a e se deitou com ela”.

No feminicídio encontra-se o nível mais alto de desigualdade, injustiça e violência com uma mulher. No próximo tópico será relatado o feminicídio bíblico ocorrido no capitulo 19 de Juízes, na Bíblia, que é um forte relato de um assassinato, através do estupro, de forma lenta e muito dolorosa.  Ela é abandonada pelo marido que entrega aos agressores e eles abusam dela durante a noite toda e no dia seguinte ela é deixada na porta da sua casa e o marido corta o corpo dela em vários pedaços.

O Capítulo 19 de Juízes: Uma História de Violência e Impunidade

As histórias bíblicas são contadas de uma forma encantadora e cativante para atrair a atenção dos leitores. Essas histórias não são apenas para trazer uma comunicação sem propósito, mas para ensinar e transmitir ensinamentos profundos sobre a vida, seus desafios e injustiças e como Deus age em cada situação.

Por meio de suas narrativas ricas e personagens envolventes, a Bíblia oferece insights valiosos sobre a natureza humana, a importância da fé e a busca por justiça e redenção. Ao ler essas histórias, somos convidados a refletir sobre nossa própria jornada e encontrar inspiração para enfrentar nossos dilemas pessoais.

Além disso, as narrativas bíblicas não são estáticas; elas permanecem relevantes ao longo do tempo, adaptando-se às diferentes culturas e contextos, e continuam a moldar a maneira como vemos o mundo e nos relacionamos com Deus.

Nos últimos capítulos de Juízes é apresentado um período de decadência moral e social do povo de Deus, conforme descrito abaixo:

Os cinco últimos capítulos de Juízes retratam uma época de anarquia geral e falta de leis. Eles narram dois acontecimentos horríveis que ilustram um dos períodos mais sombrios da história nacional de Israel: Mica e a migração de Dã (17,18) e o estupro da concubina do levita e as subsequentes guerras entre as tribos (19,21). Nesse trecho, lemos sobre idolatria, conspiração, violência sem sentido e degeneração sexual (ARNOLD; BEYER, 2011, p. 184).

Em Juízes 19:1-4 é apresentado este cenário: “Naqueles dias, em que não havia rei em Israel...” e anteriormente, em Juízes 17:6 diz: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada qual fazia o que achava mais reto”, essa é uma expressão que deixa claro como é viver em algum lugar ou período que não existem leis e regras no qual domina a desorganização e o caos.

Um levita e a violência em Israel. A situação de Israel havia se deteriorado a tal ponto que alguns do povo de Deus se comportavam de maneira semelhante aos antigos habitantes das cidades condenadas de Sodoma e Gomorra. O resultado foi uma guerra civil entre as tribos. A história sórdida que encerra o livro de Juízes deixa claro que a desobediência de Israel à aliança com o Senhor era decorrente da falta de um rei fiel à aliança. A ênfase sobre o ato do levita de cortar sua concubina em doze partes a fim de convocar Israel (um paralelo claro com o ato de Saul em 1 Sm 11:6-8) teve uma repercussão negativa tanto para Benjamim quanto para Saul (GENEBRA, 1999).

O texto de Juízes 19:1-4 relata a história de uma concubina[1] que fica chateada com o seu marido, um levita, e decide voltar para a casa de seu pai, onde permanece por quatro meses. O motivo exato da raiva da esposa não é esclarecido no texto, apesar dela ser uma concubina e o levita ter uma posição elevada na sociedade, exercendo certa autoridade sobre ela. A demora de quatro meses por parte do levita para procurá-la também não é explicada, o que torna difícil compreender suas ações e motivações nessa narrativa.

Agora, em Juízes 19:5-15, o levita encontra-se em viagem com a sua concubina e um dos seus servos. A concubina sempre fica de lado na história, ou seja, a ênfase no texto agora é o servo do levita, que por sua vez é chamado no texto de “seu senhor”. O servo comenta sobre passar a noite numa cidade de estrangeiros, mas o seu senhor não aceita, pois é uma cultura que não pertence ao povo de Israel. Como levita ele tem conhecimento da Lei do Senhor, contida no texto: “Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor, vosso Deus” Levítico 19:34. Portanto, ele deveria amar aquele povo, mas ele despreza a Lei do Senhor e toma sua própria decisão.  Aqui já se percebe que o levita entra em contradição com o que é certo, conforme a Lei do Senhor, demonstrando o seu afastamento de tais princípios.

Em Juízes 19:16-21 percebe-se que até o momento a mulher não era citada e mesmo ela sendo o centro da história, não é dada nenhuma ênfase nesse ponto. A mulher aqui realmente não é importante e lá em Juízes 19:2 diz “aborrecendo-se dele, o deixou...” e conforme citado na Bíblia de Estudo Genebra ou “ela foi infiel a ele”. A lei exigia que os adúlteros fossem apedrejados: “Se um homem for achado deitado com uma mulher que tem marido, então, ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher e a mulher; assim, eliminarás o mal de Israel” Deuteronômio 22:22. No entanto, “cada qual fazia o que achava mais reto” Juízes 17:6; 21:25).  Outro ponto de destaque está na sua fala: “...ninguém há que me recolha em casa”, mostrando que os outros dois, a concubina e seu servo, são insignificantes e mais uma vez o levita levanta indícios da sua atitude negativa como um homem de Deus.

Na parte final, em Juízes 19:22-30, Phyllis Trible, uma estudiosa sobre assuntos feministas diz que a concubina, que abandonou seu marido e foi para casa de seu pai, foi alvo de uma violência ao extremo. Esse abandono é levado a uma vingança do seu marido. Ela interpreta que ao abandonar seu marido ela desafia sua autoridade como o seu senhor. Ela era submissa e ao abandonar seu marido se torna alguém que busca justiça e acaba desafiando seu marido (BACHMANN, 2017).

O texto bíblico não esclarece se a concubina estava viva ou morta, mas mesmo assim seu corpo foi cortado em doze pedaços. O levita, em sua atitude, pareceu transferir a culpa para a sociedade, destacando a propensão humana para justificar seus erros e atos malignos.

Reflexões e Desafios

        Como foi possível escrever uma história tão cruel nas Escrituras do Antigo Testamento? Não é comum encontrarmos histórias assim na Bíblia, porém tais histórias enfatizam lições teológicas para a vida real mostrando como a humanidade necessita de redenção. É uma história forte e difícil de aceitar, mas é a realidade de um mundo caído no qual vivemos.

Quando estudamos os textos bíblicos precisamos refletir sobre os desafios da sociedade atual e buscar respostas para promover a igualdade entre as pessoas, o respeito e a segurança para as mulheres. Importante entendermos que como em qualquer texto bíblico as interpretações variam e por isso é necessário uma abordagem mais profunda e crítica para lidar com cada situação.

Mesmo que a Bíblia descreva fatos horríveis de feminicídio é preciso entender que a mensagem bíblica do cristianismo é amor, compaixão e justiça. Jesus Cristo deixou o exemplo com relação ao tratamento para as mulheres quando esteve no seu ministério terreno valorizando cada uma delas, restaurando vidas e trazendo a dignidade, até mesmo desafiando as culturas e normas daquela época. O Evangelho promove paz, transformação, vida e respeito para todas as pessoas.

Referências:

ARNOLD, Bill T.; BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo. Cultura Cristã, 2001.

BACHMANN, Mercedes L. García. Mulheres no Livro dos Juízes. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA), v. 2, p. 105-121, 2017.

GENEBRA, Bíblia de Estudo. São Paulo e Barueri. Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

SILVA, Carla da. A desigualdade imposta pelos papéis de homem e mulher: uma possibilidade de construção da igualdade de gênero. Revista Direito em Foco, v. 5, p. 1-9, 2012.



[1] As concubinas eram companheiras reconhecidas, mas possuíam menos direitos legais do que as esposas (GENEBRA, Bíblia de Estudo. São Paulo e Barueri. Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.)


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