A Bíblia contém uma história forte de um assassinato, através de estupro, de forma lenta e muito dolorosa. Ela é abusada sexualmente durante a noite toda pelos agressores e no dia seguinte é deixada na porta da sua casa, para o marido.
ESTUPRO, VIOLÊNCIA SEXUAL E FEMINICÍDIO NA BÍBLIA
Por Samuel Carvalho dos Santos
História de Feminicídio na Bíblia:
A violência contra as mulheres é uma triste realidade persistente no
mundo moderno, deixando cicatrizes profundas na sociedade. Entretanto, é
fundamental reconhecer que essa problemática não é exclusiva da atualidade;
vestígios dessa triste história também são encontrados na Bíblia, revelando
narrativas dolorosas de mulheres que enfrentaram violência, opressão e até
mesmo tragédias fatais. É necessário enfrentar esse legado histórico com
coragem, a fim de promover uma mudança significativa e construir uma sociedade
onde todas as mulheres sejam tratadas com dignidade e respeito.
No livro de Gênesis encontramos a história da criação do ser humano.
Homem e mulher foram criados a semelhança de Deus, portanto com valores e
direitos iguais. Gênesis 1:27: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” O texto aqui está bem claro,
ambos os sexos foram criados iguais, sem nenhuma distinção, dignos de todo o
respeito. Os princípios e ensinamentos bíblicos não mudaram.
Encontramos no Velho Testamento algumas mulheres com histórias marcantes
de poder, liderança, conquista, enfim, mulheres que influenciaram a sociedade
na sua época como Débora, uma juíza que foi uma líder em Israel numa batalha e
era conhecida por ser sábia e corajosa (Juízes 4-5); Rute, uma viúva moabita
que não deixou sua sogra, que era judia, e com isso se tornou uma antecessora
do Rei Davi (Rute 1-4) e Ester, uma rainha muito respeitada e admirada pelo seu
povo devido seus atos de fé e coragem (Ester 1-10). Enfim, essa são apenas
algumas das mulheres bíblicas que influenciaram positivamente seu povo e
marcaram gerações inteiras.
Também encontramos na Bíblia histórias de mulheres marcadas por abusos
sexuais, opressão e violência como o estupro de Diná, encontrado em Gênesis
34:2 “Viu-a Siquém, filho do heveu Hamor, que era príncipe daquela terra, e,
tomando-a, a possuiu e assim a humilhou” e os abusos que Tamar sofreu,
encontrado em 2 Samuel 13:14 “Porém ele não quis dar ouvidos ao que ela lhe
dizia; antes, sendo mais forte do que ela, forçou-a e se deitou com ela”.
No feminicídio encontra-se o nível mais alto de desigualdade, injustiça e violência com uma mulher. No próximo tópico será relatado o feminicídio bíblico ocorrido no capitulo 19 de Juízes, na Bíblia, que é um forte relato de um assassinato, através do estupro, de forma lenta e muito dolorosa. Ela é abandonada pelo marido que entrega aos agressores e eles abusam dela durante a noite toda e no dia seguinte ela é deixada na porta da sua casa e o marido corta o corpo dela em vários pedaços.
O Capítulo 19 de Juízes: Uma História
de Violência e Impunidade
As histórias bíblicas são contadas de uma forma encantadora e cativante
para atrair a atenção dos leitores. Essas histórias não são apenas para trazer
uma comunicação sem propósito, mas para ensinar e transmitir ensinamentos
profundos sobre a vida, seus desafios e injustiças e como Deus age em cada
situação.
Por meio de suas narrativas ricas e personagens envolventes, a Bíblia
oferece insights valiosos sobre a natureza humana, a importância da fé e a
busca por justiça e redenção. Ao ler essas histórias, somos convidados a
refletir sobre nossa própria jornada e encontrar inspiração para enfrentar
nossos dilemas pessoais.
Além disso, as narrativas bíblicas não são estáticas; elas permanecem
relevantes ao longo do tempo, adaptando-se às diferentes culturas e contextos,
e continuam a moldar a maneira como vemos o mundo e nos relacionamos com Deus.
Nos últimos capítulos de Juízes é apresentado um período de decadência
moral e social do povo de Deus, conforme descrito abaixo:
Os cinco últimos capítulos de Juízes
retratam uma época de anarquia geral e falta de leis. Eles narram dois
acontecimentos horríveis que ilustram um dos períodos mais sombrios da história
nacional de Israel: Mica e a migração de Dã (17,18) e o estupro da concubina do
levita e as subsequentes guerras entre as tribos (19,21). Nesse trecho, lemos
sobre idolatria, conspiração, violência sem sentido e degeneração sexual
(ARNOLD; BEYER, 2011, p. 184).
Em Juízes 19:1-4 é apresentado este cenário: “Naqueles dias, em que não
havia rei em Israel...” e anteriormente, em Juízes 17:6 diz: “Naqueles dias,
não havia rei em Israel; cada qual fazia o que achava mais reto”, essa é uma
expressão que deixa claro como é viver em algum lugar ou período que não
existem leis e regras no qual domina a desorganização e o caos.
Um levita e a violência em Israel. A
situação de Israel havia se deteriorado a tal ponto que alguns do povo de Deus
se comportavam de maneira semelhante aos antigos habitantes das cidades
condenadas de Sodoma e Gomorra. O resultado foi uma guerra civil entre as tribos.
A história sórdida que encerra o livro de Juízes deixa claro que a
desobediência de Israel à aliança com o Senhor era decorrente da falta de um
rei fiel à aliança. A ênfase sobre o ato do levita de cortar sua concubina em
doze partes a fim de convocar Israel (um paralelo claro com o ato de Saul em 1
Sm 11:6-8) teve uma repercussão negativa tanto para Benjamim quanto para Saul
(GENEBRA, 1999).
O texto de Juízes 19:1-4 relata a história de uma concubina[1] que fica chateada com o
seu marido, um levita, e decide voltar para a casa de seu pai, onde permanece
por quatro meses. O motivo exato da raiva da esposa não é esclarecido no texto,
apesar dela ser uma concubina e o levita ter uma posição elevada na sociedade,
exercendo certa autoridade sobre ela. A demora de quatro meses por parte do
levita para procurá-la também não é explicada, o que torna difícil compreender
suas ações e motivações nessa narrativa.
Agora, em Juízes 19:5-15, o levita encontra-se em viagem com a sua
concubina e um dos seus servos. A concubina sempre fica de lado na história, ou
seja, a ênfase no texto agora é o servo do levita, que por sua vez é chamado no
texto de “seu senhor”. O servo comenta sobre passar a noite numa cidade de
estrangeiros, mas o seu senhor não aceita, pois é uma cultura que não pertence
ao povo de Israel. Como levita ele tem conhecimento da Lei do Senhor, contida
no texto: “Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco;
amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu
sou o Senhor, vosso Deus” Levítico 19:34. Portanto, ele deveria amar aquele
povo, mas ele despreza a Lei do Senhor e toma sua própria decisão. Aqui já se percebe que o levita entra em
contradição com o que é certo, conforme a Lei do Senhor, demonstrando o seu
afastamento de tais princípios.
Em Juízes 19:16-21 percebe-se que até o momento a mulher não era citada
e mesmo ela sendo o centro da história, não é dada nenhuma ênfase nesse ponto.
A mulher aqui realmente não é importante e lá em Juízes 19:2 diz
“aborrecendo-se dele, o deixou...” e conforme citado na Bíblia de Estudo
Genebra ou “ela foi infiel a ele”. A lei exigia que os adúlteros fossem
apedrejados: “Se um homem for achado deitado com uma mulher que tem marido,
então, ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher e a mulher; assim,
eliminarás o mal de Israel” Deuteronômio 22:22. No entanto, “cada qual fazia o
que achava mais reto” Juízes 17:6; 21:25). Outro ponto de destaque está na sua fala:
“...ninguém há que me recolha em casa”, mostrando que os outros dois, a
concubina e seu servo, são insignificantes e mais uma vez o levita levanta
indícios da sua atitude negativa como um homem de Deus.
Na parte final, em Juízes 19:22-30, Phyllis Trible, uma estudiosa sobre
assuntos feministas diz que a concubina, que abandonou seu marido e foi para
casa de seu pai, foi alvo de uma violência ao extremo. Esse abandono é levado a
uma vingança do seu marido. Ela interpreta que ao abandonar seu marido ela
desafia sua autoridade como o seu senhor. Ela era submissa e ao abandonar seu
marido se torna alguém que busca justiça e acaba desafiando seu marido
(BACHMANN, 2017).
O texto bíblico não esclarece se a concubina estava viva ou morta, mas
mesmo assim seu corpo foi cortado em doze pedaços. O levita, em sua atitude,
pareceu transferir a culpa para a sociedade, destacando a propensão humana para
justificar seus erros e atos malignos.
Reflexões e Desafios
Como foi possível escrever uma história tão cruel nas Escrituras do Antigo Testamento? Não é comum encontrarmos histórias assim na Bíblia, porém tais histórias enfatizam lições teológicas para a vida real mostrando como a humanidade necessita de redenção. É uma história forte e difícil de aceitar, mas é a realidade de um mundo caído no qual vivemos.
Quando estudamos os textos bíblicos precisamos refletir sobre os
desafios da sociedade atual e buscar respostas para promover a igualdade entre
as pessoas, o respeito e a segurança para as mulheres. Importante entendermos
que como em qualquer texto bíblico as interpretações variam e por isso é
necessário uma abordagem mais profunda e crítica para lidar com cada situação.
Mesmo que a Bíblia descreva fatos horríveis de feminicídio é preciso
entender que a mensagem bíblica do cristianismo é amor, compaixão e justiça.
Jesus Cristo deixou o exemplo com relação ao tratamento para as mulheres quando
esteve no seu ministério terreno valorizando cada uma delas, restaurando vidas e
trazendo a dignidade, até mesmo desafiando as culturas e normas daquela época.
O Evangelho promove paz, transformação, vida e respeito para todas as pessoas.
Referências:
ARNOLD, Bill T.; BEYER, Bryan E. Descobrindo o Antigo Testamento. São Paulo. Cultura Cristã, 2001.
BACHMANN, Mercedes L. García. Mulheres no Livro dos Juízes. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA), v. 2, p. 105-121, 2017.
GENEBRA, Bíblia de Estudo. São Paulo e Barueri. Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
SILVA, Carla da. A desigualdade imposta pelos papéis de homem e mulher: uma possibilidade de construção da igualdade de gênero. Revista Direito em Foco, v. 5, p. 1-9, 2012.
[1] As concubinas eram companheiras
reconhecidas, mas possuíam menos direitos legais do que as esposas (GENEBRA,
Bíblia de Estudo. São Paulo e Barueri. Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do
Brasil, 1999.)